“Nós, filhos e donos da terra, poderíamos desarmar eles
(policiais). Essa é a nossa casa. Porque não podemos ir com nossas armas (arco
e flecha, bordunas, maracá...)? Somos brasileiros também. Eles poderiam nos
respeitar. Não podemos ir para casa sendo humilhados” (Gersina Krahô). Aplausos
e silêncio. A mesma posição, radical e corajosa, foi manifestada pelo seu irmão,
que indagou aos participantes do Acampamento Terra Livre (ATL): “Por que não
podemos ir com nossas armas se eles vão armados? Os espíritos também estão
vendo”.
Essa posição da guerreira e guerreiro Krahô foi acatada pelo
acampamento que entendeu que os parentes poderiam ir para a caminhada com todos
os seus instrumentos sociais e culturais. Enquanto isso, uma delegação indígena
estava negociando com o comandante da Polícia, que foi irredutível: “Arco, flecha
e tacape não passam”. Havia duas barreiras militares, uma da Polícia Militar do
Distrito Federal e outra da Força Nacional.
Após mais algumas ponderações foi sugerido que seguissem na passeata
apenas com os maracás, pois seria uma caminhada ritual. E assim se evitaria
qualquer desdobramento, em termos de confronto.
Os rituais, começados após o almoço, foram se espalhando por
todo o espaço do Acampamento. O objetivo maior da passeata seria a entrega do
documento final do Acampamento às autoridades de alguns ministérios. E assim
aconteceu sem incidentes, apesar da forte presença militar, inclusive com cães
e cavalos. Recado dado, pacificamente. Por que tamanha prepotência e falta de
condições de um diálogo em pé de igualdade? Repetiu-se a velha lógica colonial
da imposição à força da vontade da dominação secular. Aliás, essa tem sido a
atitude quando inúmeras delegações indígenas foram impedidas de entrar no
Congresso Nacional, quando aí estavam sendo debatidos temas a respeito dos
povos indígenas, numa clara afronta aos direitos indígenas, e a legislação
nacional e internacional.
Solidariedade nacional e
internacional
No último dia do ATL houve várias manifestações de
solidariedade aos povos indígenas na luta por seus direitos, especialmente a
demarcação e respeito a seus territórios. Representantes indígenas de países
como a Indonésia, Bolívia, Equador e a Guatemala, manifestaram apoio e
solidariedade aos povos do Brasil na luta por seus direitos. A constatação de
que as lutas dos povos originários em todos os continentes é basicamente a
mesma: respeito por seus territórios, recursos naturais, expressões culturais e
formas de vida e organização com autodeterminação. A luta dos povos originários não tem
fronteiras pois é uma luta humanitária, portanto de toda a humanidade.
Importante solidariedade foi a manifestada pelo Conselho
Nacional de Direitos Humanos, cuja coordenação se fez presente no Acampamento,
para trazer seu apoio aos direitos indígenas, denunciando toda forma de
violação de seus direitos, violências e criminalização de suas lideranças.
Assumiram algumas ações bem concretas, expostas pela procuradora-geral da República,
Dra. Déborah Duprat. Denunciar o ministro
da Justiça em sua manifesta ação de enfraquecimento da Funai; apuração da
truculência da polícia contra os participantes do ATL; denúncia de todas as
vezes que os índios tiveram acesso negado ao Congresso Nacional.
A força das falas e rituais
“Esse foi um acampamento atípico, não apenas pela sua enorme
diversidade de povos participantes, com aproximadamente 4 mil pessoas, mas
também pela intensidade e beleza dos rituais e as inúmeras falas de denúncias e
afirmação de seus direitos, e violências perpetradas pelo Estado brasileiro e
pela ganância das elites gananciosas das elites econômicas e políticas”.
Alguns depoimentos foram feitos entre lágrimas, como foi o
caso de uma mulher Munduruku, ao denunciar as constantes violências a que são
submetidos, especialmente pelos grandes projetos que ameaçam suas vidas.
Dentre as falas com a força dos espíritos, emanadas da
entranha da vida, da dor e da esperança, destacaram-se as de inúmeras mulheres,
pela sensibilidade e profundeza de seus sentimentos, como também pela coragem,
firmeza e determinação na luta.
Martírio e Mapa Guarani Continental
Ao final do ATL 2017, duas importantes ferramentas para a
luta foram apresentadas. O Mapa Guarani Continental, em pré-estreia, foi
apresentado por lideranças Guarani-Kaiowá. É um mapa elaborado no âmbito da
Campanha Guarani. Resultado de um trabalho coletivo que envolveu pessoas e
instituições da Argentina, Bolívia, Paraguai e Brasil. O movimento indígena Guarani
participou ativamente na construção dessa importante ferramenta da luta desse
povo. Foram identificados e colocados no
mapa 1.416 comunidades Guarani, num total de 280 mil pessoas. Segundo o antropólogo
Georg Grunberg, um dos coordenadores
desse trabalho, “os Guarani, sua cultura e resistência são tão impressionantes
e importantes para a humanidade, que se não existissem teriam que ser
inventados”.
E para que todos tivessem um pouco mais de informação sobre
o genocídio e martírio a que está sendo submetido o povo Guarani-Kaiowá no Mato
Grosso do Sul, nada melhor do que assistir o filme de Vicent Carelli,
“Martírio”. Além da tenaz resistência e sofrimento desse povo, o filme retrata o
processo histórico a que todos os povos indígenas do país, os resistentes e os
extintos, foram e estão sendo submetidos. O diretor do filme esteve presente no
ATL para o debate.
Egon Heck – Fotos Laila Menezes
Cimi Secretariado Nacional
28 de abril 2017