Foram mais de duas semanas ouvindo os relatos de luta e
resistência, sentindo e dialogando sobre a violência e criminalização, andando
pelos “senderos” da morte nos acampamentos, retomadas e os confinamentos Kaiowá
Guarani. Foram dias intensos de sentir o pulsar da alma Guarani, na profundeza
de sua espiritualidade, na firmeza de sua resistência e nos sonhos da terra sem
males, em seu longínquo horizonte, na fronteira do Mato Grosso do Sul, “onde o
Brasil foi Paraguai”.
Foram momentos coletivos de esperança e intensos debates na
Aty Guasu dos Jovens, na Terra Indígena Sassoró, no fechamento de estrada, na
BR que liga Amambai a Iguatemi, na discussão e duras exigências com o
presidente da Funai, em Dourados. Foram
duros nas cobranças feitas ao Estado brasileiro e a Funai, que tantos vezes os
enganaram, principalmente não demarcando as terras, jogando-os na violência e
miséria.
Um momento de emoção, revolta e denúncia aconteceu na oga
pysy (casa de reza) na retomada de Ytajacu Yguá. Arnaldo, pai de Alessandra,
que havia sido atropelada e morta na BR-163, há poucos dias, fez uma fala dura
contra todos os responsáveis por essas mortes, tida por eles como intencionais,
contra a vida de seu povo.
De fato foram centenas de vidas ceifadas nas estradas do
Mato Grosso do Sul. Lembro-me de uma visita à aldeia de Limão Verde, município
de Amambai. Revoltados contaram que naquela semana, três indígenas haviam sido
mortos por atropelamento. Quando sentiram que uma criança havia sido atropelada
foram socorrê-la. Na sequência mais duas
pessoas morreram atropeladas. A maioria
destas mortes são de crianças e das comunidades acampadas na beira da estrada.
Até quando continuaremos a contabilizar os mortos por atropelamento, por
suicídio, assassinados por pistoleiros ou vítimas de violência por conflitos
internos, muitos deles em consequência da não demarcação de suas terras?
A velha tese de
dividir para dominar
Um dos temas conversado em quase todas as visitas às
comunidades foi a continuidade da política colonialista da divisão dos índios
pelos interesses anti-indígenas. O lance mais recente que muito bem expressa
essa política foi a criação do “Conselho dos Caciques”, inventado e em fase de
implantação por políticos e parlamentares do Mato Grosso do Sul.
Porém, apesar de algumas lideranças Kaiowá Guarani terem
sido aliciados por argumentações e promessas falaciosas, a Aty Guasu tem
denunciado energicamente essa manobra divisionista, afirmando enfaticamente que
esse conselho não os representa. Pelo contrário, está atrelado aos inimigos dos
povos indígenas no Estado. Conclamaram os parentes Terena e os demais povos
indígenas, a não se deixarem ludibriar por essa artimanha colonialista de
“dividir para dominar”. A falácia do arrendamento é outra das estratégias
utilizadas pelos inimigos dos índios no Mato Grosso do Sul. Algumas comunidades
estão senso assediadas e bombardeadas constantemente com as benesses com que seriam
agraciados, no caso do arrendamento de suas terras ao agronegócio.
Organização e
autodemarcação
O que mais se viu nas visitas às comunidades e famílias, é a
necessidade de aprofundarem a união entre si para poderem continuar enfrentando
com êxito e dignidade, as lutas pelos seus direitos e territórios. União,
organização e luta, foram os termos mais repetidos pelas lideranças e Nhanderu
e Nhande si (líderes religiosos).
Mato Grosso do Sul: a
menina dos olhos da Funai
Essa foi uma das afirmações do presidente do órgão
indigenista oficial. Essa mesma afirmação já foi feita por presidentes
anteriores. Porém, o que os indígenas querem saber é se o órgão está com os
olhos tapados e a estrutura sucateada, de tal maneira que o esqueleto
cadavérico já não mais defende os direitos dos povos indígenas, especialmente
seus territórios, mas está cada vez mais subjugada pelos seus inimigos.
De nada adiante o presidente do órgão pedir perdão aos
indígenas se este não se transforma em ações concretas de defesa dos direitos
desses povos.
“Não temos mais paciência, queremos a verdade e não
enrolação, queremos a demarcação de nossas terras, e já”, afirmou com
contundência uma das lideranças.
“Não temos mais medo de enfrentar a polícia e os
fazendeiros. Já tiraram a nossa terra e agora querem tirar a nossa vida. O povo
está se levantando. Vamos morrer combatendo”, afirmou uma das lideranças presentes. E complementou
dizendo que recusam a proposta de compra de terras e a aplicação do marco
temporal. Por isso exigem a urgente publicação dos relatórios de identificação
de seus territórios.
Apesar das ásperas críticas ao governo e à Funai, o
presidente do órgão ouviu sem se exacerbar, mas reagiu com veemência, quando
disseram que ele estava aí apenas para defender seu salário. Mesmo assim
manteve sua promessa de em maio retornar a Mato Grosso do Sul para trazer os
resultados dos compromissos assumidos.
Nos últimos anos, a questão Guarani-Kaiowá não apenas ficou
nas retomadas, nos acampamentos, nos assassinatos e na permanente violência.
Essa realidade foi denunciada nacional e internacionalmente, com lideranças participando
de audiências em instâncias como a ONU e a OEA.
Brasília, 11 de abril de 2017.
Texto e fotos - Egon Dionisio Heck
Secretariado Nacional do Cimi