Mal o sol se levanta e começam a vir abaixo as casas da
comunidade Pataxó de Aratikum. Essa comunidade indígena está localizada na
região onde iniciou a invasão a 516 anos. Em homenagem aos invasores, o município
leva o simpático nome de Santa Cruz Cabrália. A revolta e indignação das mais
de 30 famílias que viram suas casas e sonhos ruírem, foram a denúncia
silenciosa diante de mais uma brutal violência contra os direitos de uma
comunidade indígena desse “país tão grande e tão pequeno para nós, povos
indígenas”, nas palavras de Marçal Tupã’y ao Papa, em Manaus, em julho de 1980.
Infelizmente, a cena que se repetiu na semana passada, em
Cabrália, não é uma exceção, mas tem sido recorrente nas últimas décadas e
meses. No ano 2000, foi nesta cidade que se estabeleceu a base dos “Outros
500”, importante base da articulação do “Movimento de Resistência Indígena,
Negra e Popular”. Naquela ocasião, houve violência contra várias comunidades
indígenas da região e no dia 21 de abril, a polícia usou de truculência para
impedir a marcha de protesto até Porto Seguro.
Os males na vida dos povos originários no país tem sido uma
constante expressando-se principalmente na negação de demarcação e garantia dos
territórios, conforme determinam os artigos 231 e 232 da Constituição e a
legislação internacional. Essa tem sido a principal causa das violências contra
esses povos, e o saque de seus recursos naturais.
O Bem Viver
para todos
Apesar de estarmos atravessando um período de retrocessos e
golpes, acima de tudo temos que alimentar a esperança e a utopia. “Temos que
disputar o espaço público, mas temos que garantir a sobrevivência dos
‘territórios da utopia’ que são os territórios que estão sendo massacrados... É
estratégico que os quilombolas e os indígenas experimentem o processo do
pós-eucalipto. É estratégico que os pescadores garantam os territórios
pesqueiros tradicionais. Porque é por aí que poderemos construir um horizonte
de transição” (Marcelo Calazans, 2015).
Mas os povos indígenas se mobilizam, lutam, resistem. O povo
Apinajé, de Tocantins, realizou sua 7ª Assembleia – PEMPXA, dando seu recado
com veemência e lucidez política:
“Nesse momento consideramos o PDA/Matopiba o mais letal e
ameaçador plano de intervenção na vida das populações (indígenas, quilombolas,
ribeirinhos e quebradeiras de coco) que depende do bioma Cerrado para
sobreviver, esse com certeza é parte da proposta (entreguista) do governo de
vender, alienar e arrendar as terras brasileiras para as grandes empresas
produtoras de grãos. Por outro lado, o governo também fala em afrouxar as
regras para o Licenciamento Ambiental. Isso significa que a ganância e a fome
de lucro das multinacionais do setor elétrico, dos ruralistas e das mineradoras
nunca terão limites”.
O povo Kinikinaua, no Mato Grosso do Sul, realizou sua 3ª
Assembleia. Uma história de resistência inquebrantável de um povo que foi
obrigado a viver escondido sob identidade de outro povo, fruto da política do
Estado brasileiro.
Diante dessa realidade catastrófica, o Bem Viver surge como
uma das formas de criarmos um novo horizonte para as lutas das populações e povos
tradicionais, os povos indígenas, os sem terra, os marginalizados dos centros
urbanos e de todos os que se propõem a construir um futuro/presente melhor para
todos. Conforme expressam lutadores sociais do continente, o “Bem Viver é um
projeto libertador e tolerante sem preconceitos e sem dogmas... O Bem Viver,
enquanto ideia em construção, livre de preconceitos, abre a porta para formular
visões alternativas de vida, a partir das resistências e experiências
históricas” (A. Acosta, 216).
A partir dos povos
originários
Vamos emergir da
longa noite colonial
Que teima em se
projetar até os dias atuais,
Romper o
neodesenvolvimentismo,
Juntar nossas lutas e
esperanças
Para pintar o nosso
horizonte
Com as múltiplas
cores
Da história, da
memória
Espiritualidade,
originária e atual.
Do silêncio do Bem
Viver,
Do ventre da Mãe
Terra
Vamos reencantar
nossos
Arcos e flechas na
luta diária,
Nos caminhos plurais
Dos projetos de Bem
Viver
Nossa singela homenagem à lutadora e guerreira Rosana
Kaingang, que neste fim de semana partiu para a aldeia definitiva.
Egon Heck
Secretariado Nacional Cimi
15 de outubro de 2016