ATL 2017

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quarta-feira, 26 de outubro de 2016

Escola pra que?



Brasília viveu um dia como jamais havia vivido em pouco mais de meio século de existência. A Esplanada dos Ministérios e dos mistérios foi literalmente tomada por cavalos e aficionados da vaquejada. Entradas da Câmara dos Deputados também estavam fortemente guardadas, pois lá dentro decisivas ações e votações estavam sendo tramadas. A CPI da Funai e do Incra foi reinstalada a portas fechadas. A PEC 241 foi aprovada na Câmara, mesmo contra a vontade do povo brasileiro.




Na Universidade de Brasília (UnB) algumas centenas de professores e lideranças de povos indígenas de todo o país debateram e denunciaram as mazelas do Estado colonialista e suas políticas de dominação e genocídio dos povos originários. Foi inevitável que a pergunta que os povos indígenas e aliados faziam “escola pra que?”, voltasse a ser a base de reflexões e debates.

O 2º Fórum de Educação Escolar Indígena, organizado de forma autônoma pelos professores, lideranças indígenas e aliados da sociedade civil e universidades, trouxe com muita força um olhar crítico sobre o momento conjuntural e as escolas indígenas em seu processo secular de instrumentalização pelo projeto colonial e atual dominação pelo modelo capitalista neoliberal e desenvolvimentista.

Para o secretário do Cimi, Cleber Buzatto, o momento é delicado e extremamente preocupante, pois “os ataques aos povos indígenas e seus direitos, crescem, gerando ainda mais violência em praticamente todas as regiões do país”. Como exemplos destacou a total paralização das demarcações das terras/territórios indígenas e a constante tentativa de abrir as terras já demarcadas aos interesses do agronegócio, mineradoras, madeireiras, dentre outros. De igual gravidade é a interpretação e utilização do Marco Temporal, nas diversas instâncias do Poder Judiciário. “Isso pode levar a total inviabilização de reconhecimento e demarcação das terras indígenas”. Concluiu dizendo que “nem tudo está perdido. Pelo contrário. A resistência e insurgência dos povos indígenas, munidos de sua ciência e sabedoria, tem cada vez mais demonstrado sua força e disposição lutar pelos seus projetos de vida e Bem Viver”.

Cleber concluiu afirmando que “os povos e comunidades tradicionais são sujeitos de ‘tradição do futuro’. Uma eventual derrota deles para as forças do capital no atual contexto poderá representar a derrota da  humanidade.”


O professor Dori, da Universidade Federal da Grande Dourados, no Mato Grosso o Sul, ao explicitar a experiência de formação de professores indígenas, destacou a necessidade da indianização da universidade: “infelizmente muito pouco tem sido feito para acolher e respeitar a especificidade dos povos indígenas. A universidade continua sendo um ambiente hostil aos indígenas. Os conhecimentos dos povos originários e seus modos de produção são pouco aproveitados na universidade”. Na afirmação de Dari, “a universidade continua preparando os indígenas para uma sociedade sabidamente falida”.

Para Dari, “os saberes indígenas podem ajudar a mudar o mundo. Para tanto a educação escolar indígena tem que ser de resistência e insurgência.  Resistência Física, epistemológica, cultural, de classe, sociológica e de autoria”. Concluiu afirmando que “o problema é que nem sempre as pessoas sabem ou tem consciência, onde querem chegar com a escola. Às vezes querem chegar à integração na sociedade majoritária, adequando-se aos seus liberais e capitalistas valores, pensando que essa é a única possibilidade de pensar a dignidade. Outras vezes querem construir a autonomia, a alteridade e a solidariedade indígena”.







Rituais e cultura: a invisibilidade do país plural


Um dos objetivos deste Fórum de Educação Escolar Indígena foi dar visibilidade a esse
Brasil plural (com 305 povos originários) e profundo, historicamente massacrado e silenciado, e atualmente renascendo e se reencontrando para continuar na luta pelos seus direitos, movidos pelos seus projetos de Bem Viver e seus processos de resistência e permanente reconstrução de suas culturas e projetos de vida.



A descolonização é um processo dolorido e incompleto, porém existem sinais de descolonização: mestres tradicionais, demandas indígenas já começam a aparecer nos currículos e está se esboçando uma política linguística. E o importante é que os povos e suas organizações começam a acompanhar e exigir dos alunos que vão à universidade.

Um dos elementos fundamentais de resistência, insurgência e sobrevivência dos povos indígenas é sem dúvida a sua profunda religiosidade e vivência em harmonia com a natureza e todas as formas de vida.

A tucandeira, um ritual de passagem, dos índios Sateré Mawé, do Amazonas, está sendo realizado em toda sua beleza e profundidade cultural, social e religiosa, talvez pela primeira vez em Brasília, como expressou um dos representantes desse povo.

A esperança vai à aula e às ruas




No decorrer desses dias do Fórum, representantes indígenas estarão indo às salas de aula para debater e mostrar aos estudantes suas lutas e seus direitos. Em especial mostrando como é importante lutar juntos por uma sociedade reconhecidamente plural, tolerante, digna e justa.

Também estão sendo realizadas exposições de artesanato típico dos diferentes povos, bem como preparação de comidas típicas de vários estados.

Na tarde de ontem os professores e lideranças indígenas fizeram uma marcha, na Esplanada dos Ministérios para mostrar as agressões, violências, negação de direitos e descaso e omissão do Estado brasileiro.

Egon Heck  - fotos Laila/Cimi
Cimi Secretariado nacional
Brasília, 25 de outubro de 2016



segunda-feira, 17 de outubro de 2016

O Mal e Bem Viver dos Povos Indígenas no Brasil




Mal o sol se levanta e começam a vir abaixo as casas da comunidade Pataxó de Aratikum. Essa comunidade indígena está localizada na região onde iniciou a invasão a 516 anos. Em homenagem aos invasores, o município leva o simpático nome de Santa Cruz Cabrália. A revolta e indignação das mais de 30 famílias que viram suas casas e sonhos ruírem, foram a denúncia silenciosa diante de mais uma brutal violência contra os direitos de uma comunidade indígena desse “país tão grande e tão pequeno para nós, povos indígenas”, nas palavras de Marçal Tupã’y ao Papa, em Manaus, em julho de 1980.





Infelizmente, a cena que se repetiu na semana passada, em Cabrália, não é uma exceção, mas tem sido recorrente nas últimas décadas e meses. No ano 2000, foi nesta cidade que se estabeleceu a base dos “Outros 500”, importante base da articulação do “Movimento de Resistência Indígena, Negra e Popular”. Naquela ocasião, houve violência contra várias comunidades indígenas da região e no dia 21 de abril, a polícia usou de truculência para impedir a marcha de protesto até Porto Seguro.
Os males na vida dos povos originários no país tem sido uma constante expressando-se principalmente na negação de demarcação e garantia dos territórios, conforme determinam os artigos 231 e 232 da Constituição e a legislação internacional. Essa tem sido a principal causa das violências contra esses povos, e o saque de seus recursos naturais.


O Bem Viver para todos


Apesar de estarmos atravessando um período de retrocessos e golpes, acima de tudo temos que alimentar a esperança e a utopia. “Temos que disputar o espaço público, mas temos que garantir a sobrevivência dos ‘territórios da utopia’ que são os territórios que estão sendo massacrados... É estratégico que os quilombolas e os indígenas experimentem o processo do pós-eucalipto. É estratégico que os pescadores garantam os territórios pesqueiros tradicionais. Porque é por aí que poderemos construir um horizonte de transição” (Marcelo Calazans, 2015).



Mas os povos indígenas se mobilizam, lutam, resistem. O povo Apinajé, de Tocantins, realizou sua 7ª Assembleia – PEMPXA, dando seu recado com veemência e lucidez política:

“Nesse momento consideramos o PDA/Matopiba o mais letal e ameaçador plano de intervenção na vida das populações (indígenas, quilombolas, ribeirinhos e quebradeiras de coco) que depende do bioma Cerrado para sobreviver, esse com certeza é parte da proposta (entreguista) do governo de vender, alienar e arrendar as terras brasileiras para as grandes empresas produtoras de grãos. Por outro lado, o governo também fala em afrouxar as regras para o Licenciamento Ambiental. Isso significa que a ganância e a fome de lucro das multinacionais do setor elétrico, dos ruralistas e das mineradoras nunca terão limites”.

O povo Kinikinaua, no Mato Grosso do Sul, realizou sua 3ª Assembleia. Uma história de resistência inquebrantável de um povo que foi obrigado a viver escondido sob identidade de outro povo, fruto da política do Estado brasileiro.



Diante dessa realidade catastrófica, o Bem Viver surge como uma das formas de criarmos um novo horizonte para as lutas das populações e povos tradicionais, os povos indígenas, os sem terra, os marginalizados dos centros urbanos e de todos os que se propõem a construir um futuro/presente melhor para todos. Conforme expressam lutadores sociais do continente, o “Bem Viver é um projeto libertador e tolerante sem preconceitos e sem dogmas... O Bem Viver, enquanto ideia em construção, livre de preconceitos, abre a porta para formular visões alternativas de vida, a partir das resistências e experiências históricas” (A. Acosta, 216).





A partir dos povos originários
Vamos emergir da longa noite colonial
Que teima em se projetar até os dias atuais,
Romper o neodesenvolvimentismo,
Juntar nossas lutas e esperanças
Para pintar o nosso horizonte
Com as múltiplas cores
Da história, da memória
Espiritualidade, originária e atual.
Do silêncio do Bem Viver,
Do ventre da Mãe Terra
Vamos reencantar nossos
Arcos e flechas na luta diária,
Nos caminhos plurais
Dos projetos de Bem Viver

Nossa singela homenagem à lutadora e guerreira Rosana Kaingang, que neste fim de semana partiu para a aldeia definitiva.

Egon Heck
Secretariado Nacional Cimi
15 de outubro de 2016



quarta-feira, 5 de outubro de 2016

Povos Indígenas, eleições e o Bem Viver


“Um povo que não sabe de onde vem,
 jamais saberá para onde ir.
Um povo sem consciência histórica,
jamais terá consciência ideológica
(Conselho Mundial dos Povos Indígenas, 1980)







Quando começa a baixar a poeira das urnas eletrônicas, digitais ou não, é hora de um lento e atento olhar para os rumos e roncos das urnas. Nesse turbilhão de olhares, talvez em sua maioria descrentes ou decepcionados no caminho, emergem os povos indígenas.

Como nas últimas décadas, não foi difícil contar o número dos indígenas eleitos, prefeitos ou vereadores. A percentagem é pequena. Porém, podemos garimpar alguns números e resultados expressivos. Os Terena, do Mato Grosso do Sul comemoraram o fato de passarem de um para cinco vereadores. No Acre, pela primeira vez na história, os povos indígenas elegeram um prefeito. Os povos indígenas do Alto Rio Negro elegeram parentes para ocupar os cargos de prefeito e vice-prefeito em São Gabriel da Cachoeira. Eles já haviam eleito Pedro Tariano no final do século passado.  Os Xakriabá, em Minas Gerais, reelegeram o prefeito de São João das Missões. E assim poderíamos continuar pontuando alguns resultados positivos para os povos indígenas.

 Nas redes sociais, os indígenas eleitos agradecem os eleitores ou são gratificados pelos resultados obtidos.  Outros manifestam seu desejo de continuar suas lutas pelos seus direitos nesses novos espaços. Neste sentido, vale lembrar a articulação dos parlamentares (vereadores indígenas) do Mato Grosso do Sul, por iniciativa do indigenista, professor Antonio Brand (in memoriam), através de encontros e debates sobre as possibilidades e limites de cada um em seus municípios e em conjunto enquanto indígenas.




O grande desafio colocado, não apenas aos vereadores e prefeitos, mas ao movimento indígena é conseguir efetivamente fazer um bom trabalho numa conjuntura que é cada vez mais adversa aos direitos dos povos originários. Por outro lado, temos uma política partidária confusa, marcada pela forte corrupção gerando um descrédito e descontentamento cada vez maior na sociedade e movimentos sociais e populares, bem como nos povos e comunidades tradicionais.
Nos três poderes vemos avançar iniciativas contrárias aos direitos dos povos indígenas, com ênfase no Legislativo com a tropa de choque antiindígena encastelada na bancada ruralista. Já reconstituíram a CPI da Funai e do Incra e deixaram a PEC 215 na marca do pênalti. E nessas investidas contra os direitos indígenas certamente estarão contando com o novo governo que deixou a Funai sem norte, e ainda mais pobre e subserviente.  Ao movimento indígena e seus representantes eleitos, só resta a continuidade da mobilização permanente, desde as aldeias até Brasília. O importante é consolidar o movimento indígena, ampliar as alianças e fortalecer a resistência. Só assim talvez consigam se livrar das armadilhas e das trilhas da corrupção e cooptação a que estarão permanentemente submetidos

Nas trilhas do Bem Viver




Nessa conjuntura de retrocessos no país e no continente, são preciosas as lutas vitoriosas e as conquistas de reconhecimento de direitos e os avanços constitucionais e na prática em países como Equador e Bolívia. O reconhecimento da plurinacionalidade, dos direitos da Mãe Terra, do Bem Viver, da interculturalidade e da justiça indígena, são indiscutivelmente avanços e referências para os movimentos indígenas no continente e no mundo.

“O bem Viver é eminentemente subversivo. Propõem saídas descolonizadoras em todos os âmbitos da vida Humana. O Bem Viver não é um simples conceito. É uma vivência” (Alberto Acosta).
O Bem Viver, a partir das lutas dos povos por seus territórios, é a alma da resistência e o novo horizonte a nos iluminar o caminho. É antes de mais nada a contestação cabal do sistema capitalista, onde não há espaço para os povos indígenas, nem para aqueles que sonham e lutam por um país melhor para todos.

Egon Heck
Cimi – Secretariado Nacional

Brasília, primavera de 2016