ATL 2017

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segunda-feira, 27 de abril de 2015

Da aldeia à ONU – e agora Brasil?

“Tamanhos são os crimes que o Serviço de Proteção aos Índios degenerou a ponto de persegui-los até ao extermínio. Pode ser considerado o maior escândalo administrativo do Brasil” (Jader Figueiredo-1968).

Lindomar Terena leu o documento dos povos indígenas do Brasil
Ainda sob o impacto das manifestações, denúncias e cobranças do 11º Acampamento Terra Livre e das Mobilizações do Abril Indígena de 2015, mais um fato de extrema relevância para os povos indígenas acaba de se concretizar. Um momento de incidência internacional acaba de acontecer, quando lideranças indígenas da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) deixaram suas aldeias e foram ao espaço de diálogo das nações, a sede da Organização das Nações Unidas (ONU), em Nova York.

Ali denunciaram aquilo que protocolaram nos três poderes em Brasília uma semana antes. Um documento foi lido por Lindomar Terena, do Mato Grosso do Sul, terminando com sugestões para os membros da ONU.

Embaixo do tapete não cabe mais

É longa a história de ocultação da verdade por parte do Estado brasileiro , com relação à trágica realidade  a que estão submetidos os povos indígenas. É o famoso jeitinho de jogar a “sujeira debaixo do tapete”. Ficaram famosos os intuitos da ditadura militar, de ocultar os processos de violência e genocídio contra os povos originários, sob o manto e discurso de um “progresso” irreversível.  Eram tempos de milagre. O milagre da sobrevivência dos povos, diante da fúria das empreiteiras da ditadura.

Porém, a irrupção de denúncias escabrosas e generalizadas de violência e genocídio dos povos indígenas no Brasil, maculou a ilibada imagem do país, diante do capital internacional a procura dos melhores e mais lucrativos lugares do mundo. A reação não se fez esperar. O governo da ditadura militar chamou organismos internacionais para vir comprovar a falsidade das acusações. Pelo menos três organismos internacionais, dentre os quais a Cruz Vermelha Internacional e a Survival Internacional, estiveram no Brasil no início da década de 1970. O senhor Robin Hambury-Tenison, depois de nove semanas de contatos com inúmeras realidades indígenas, afirmou “que sem ajuda técnica e econômica internacional os 50 mil índios brasileiros desaparecerão em dois anos” (Jornal do Brasil, 08/07/1971). Referente a essa afirmação o diretor do Departamento Geral de Estudos e Pesquisas da Funai, Paulo Monteiro Santos, lamenta que tenha sido feito esse enorme custo pois com esse dinheiro poderiam ter sido instalados dois ou três postos indígenas.  Apesar desse alerta subvencionado o sr. Tenison afirmou que não existia genocídio.

Poucos anos depois, no IV Tribunal Internacional Russel, em Roterdã, na Holanda, o Brasil foi condenado pelo crime de genocídio. Foram denunciadas as situações dos povos Waimiri Atroari, Yanomami, Nambikuara e dos Kaingang, de Mangueirinha, no Paraná (Jornal Porantim, novembro 1980).

Na ONU: anúncios e denúncias

Como parte da mobilização dos povos indígenas por seus direitos e dignidade, uma delegação de representantes indígenas da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), levou ao Fórum Permanente para Questões Indígenas da Organização das Nações Unidas (ONU), no dia 24, em Nova York (EUA), a realidade das comunidades país afora.


Há menos de um ano, a violação aos direitos indígenas havia sido denunciada neste mesmo Fórum. Infelizmente quase nada mudou neste ano, e se mudou em alguns aspectos, como o intento de supressão de direitos indígenas da Constituição, a mudança foi para pior. Aumentaram as ameaças e as violências. Diante dessa realidade o movimento indígena avaliou ser necessário continuar a resistência e afirmação de seus direitos em todos os níveis, da aldeia à ONU.

Os representantes do governo brasileiro tinham acabado de anunciar com ufanismo a realização dos Jogos Mundiais Indígenas previstos para se realizarem na cidade de Palmas, Tocantins, em setembro deste ano. Porém, sentiram-se constrangidos diante das denúncias, feitas poucas horas depois.
Quem sabe não seria um gesto de boa vontade, a demarcação das terras indígenas mais conflitivas em todo país, especialmente no Mato Grosso do Sul, na Bahia e no Rio grande do Sul, a paralização de todos os projetos anti-indígenas que tramitam no Congresso, a aprovação do Conselho Nacional de Política Indigenista e o Estatuto dos Povos indígenas conforme a proposta enviada pelo momento indígena, a exclusividade das condicionantes para a terra indígena Raposa Serra do Sol... Se isso acontecer, o Brasil poderá se dizer um digno anfitrião para os jogos indígenas. Que os jogos não sejam mais um ato para ludibriar a opinião pública nacional e internacional, diante das agressões, desrespeito e omissões do Estado brasileiro.

Como na década de 1970, foi solicitada a presença de observadores internacionais, desta vez pelo movimento indígena: “Que o Fórum Permanente envie urgentemente observadores ao Brasil para que acompanhem a realidade dos conflitos territoriais, e a ofensiva estabelecida contra os direitos indígenas nos distintos poderes do Estado”.

A razão de tal solicitação constante na carta dirigida à vice-presidente do Fórum, Ida Nicolaisen, é pela “forma que o Estado brasileiro está tratando os povos indígenas: o governo federal descumpre a Constituição, os legisladores suprimem e o Judiciário restringe cada vez mais os direitos, principalmente territoriais. Enfim, há no Brasil uma virulenta campanha de criminalização,

 deslegitimação, discriminação e racismo contra os povos indígenas, caracterizados como invasores, subverteres da ordem e principalmente como obstáculos ao desenvolvimento nacional” (Declaração dos Povos Indígenas do Brasil no Fórum Permanente dos Povos Indígenas – ONU, 24/04/2015).

Esse é um momento histórico importante para o Brasil mostrar ao mundo que tem uma decisão política de tratar com respeito e dignidade seus habitantes originários, cumprindo a Constituição e a legislação internacional.  Não tem mais espaço para defender o indefensável, ou seja, a violação das leis.

Egon Heck – fotos Laila Menezes
Cimi – Secretariado Nacional

Brasília 27 de abril de 2015

sexta-feira, 17 de abril de 2015

O poder treme – o Brasil plural e originário avança


Nesta semana Brasília foi a capital do Brasil indígena. A luta e a esperança acamparam na Esplanada dos Ministérios. Talvez pela primeira vez na história desse país, quase 200 povos indígenas deram a cor, o tom e a voz dos primeiros habitantes dessa terra, mostrando quão injusto, cruel e bárbaro está sendo o avanço dos poderosos sobre os territórios indígenas, os recursos naturais, as culturas, religiões e vidas desses povos.
No coração do poder se instalou e processa um espaço de luta, de resistência e afirmação da diversidade e dignidade dos povos primeiros. Quando as raízes se agitam, o poder treme, fecha as portas, se torna mudo e cego para os clamores que brotam do fundo da terra, do grito contido, das leis e dos direitos violados.  O Estado brasileiro teme o poder simbólico e real das lutas indígenas, porque é responsável pela constante violação dos direitos desses povos.

Vigiados e constrangidos

Desde a saída das aldeias e chegada em Brasília, as lideranças indígenas sabiam que estavam sendo vigiadas e controladas pelo serviço de inteligência e repressão do Estado. Um cenário que não lhes é estranho, pois têm sido controlados e reprimidos na luta pelos seus direitos, desde o período do Serviço de Proteção aos Índios, quando tinham seus direitos de ir e vir totalmente cerceados, proibidos de participar dos encontros e lutas de seus povos, sob o manto repressor da tutela, até as formas atuais de aliciamento e cooptação. São as formas neocoloniais de fazer prevalecer os interesses dos poderosos (latifundiários, mineradores, madeireiros, agronegócio e agroindústrias, militares, políticos...) em detrimento dos direitos indígenas assegurados na Constituição brasileira e legislação internacional.
São tolerados apenas em espaços e momentos predeterminados, controlados por forte aparato policial e mesmo assim passando por constrangimentos, como ocorreu na Câmara dos Deputados, no último dia do Acampamento Terra Livre. Foi a confirmação do que o movimento indígena já vinha alertando: de falas e papeis sobre nossa realidade, exigências e direitos os Três Poderes estão abarrotados. Se nada acontece, ou pior, retrocedem e buscam suprimir nossos direitos é porque existe um sistema perverso de negação de nossas vidas e nossa existência enquanto povos e culturas diferenciadas.

Do diálogo da enganação às lutas pela terra e direitos conquistados

 
Lideranças de todas as regiões do país foram se movimentando para Brasília. Os governantes armaram as barricadas dos seus interesses, blindados pela força das armas, sem argumentos convincentes, faziam do “diálogo de enganação” seu cavalo de Tróia. Não é de hoje que as classes dominantes fazem de conta que dizem a verdade, quando essa nada mais é do que o encobrimento de interesses e uma história falaciosa para garantir privilégios e acumular capital.
Os povos indígenas estão fartos de serem ludibriados por discursos enfeitados, mancomunados com o cinismo mordaz das elites dominantes. Tudo vil enganação. Se deixassem cair as roupas da mentira, estaríamos frente a um exército desnudo, desavergonhado.
Cientes dessa realidade os povos indígenas presentes na mobilização nacional e nas regiões deixaram claro sua decisão de lutar por seus direitos, a qualquer custo, nessa guerra que lhes é imposta diariamente. “Vamos defender nossas terras nem que seja com nossas vidas... Não podemos nos acovardar”, externou uma das lideranças.
Restam os duros caminhos do retorno às suas terras tradicionais e a autodemarcação, como forma de pressionar o governo brasileiro, diante de sua omissão e alegação de não ter recursos para resolver a situação.
No documento protocolado no Palácio do Planalto, deixaram claro à presidente Dilma que caso não resolva com urgência a demarcação das terras indígenas, “o seu governo continuará com uma visível incoerência: defender no âmbito internacional o Estado democrático e os direitos humanos, enquanto internamente se permite a perpetuação de políticas e práticas etnocidas e genocidas que há 515 anos vitimam os povos indígenas”.
Os gritos de demarcação já, contra a PEC 215 e todas as iniciativas antiindígenas continuarão a ecoar nos corações de multidões pelo país e mundo afora. As flechas, bordunas e maracás continuarão soando no espírito dos jovens guerreiros e aguerridos anciões. A espiritualidade, rituais e rezas haverão de vencer todos os muros, armas e barreiras!
Egon Heck (texto) fotos: Laila Menezes
Secretariado do Cimi
Brasília 18 de abril de 2015




domingo, 12 de abril de 2015

Mobilização Abril Indígena: raízes e razões da luta


A convocatória se espalhou rapidamente por campos e campinas, florestas e cerrados, rios e igarapés desse imenso Brasil.  Os corações dos povos originários arderam em desejo  rompendo os limites das aldeias e comunidades, para ganhar o mundo,  em forma de grito e clamor: “O ataque sistemático aos direitos dos povos indígenas é inadmissível numa sociedade democrática e plural, onde esses direitos são hoje tratados como moeda de troca e objetos de barganha política. Mas os povos indígenas já deram provas suficientes de que não cederão a essa nova ofensiva, carregada de ódio, discriminação, racismo e incitação à violência, promovidos pelos donos ou representantes do poder político e econômico.”
Muitos queriam vir a Brasília, no 11º Acampamento Terra. Apenas uns mil conseguirão chegar até o centro de decisão onde se tramam tantas decisões nefastas contra os povos indígenas, quilombolas, populações tradicionais e a mãe terra.  A maioria estará se mobilizando, dando sua força e solidariedade em suas regiões.  Será uma explosão de insatisfação e de luta pelos direitos em todos os rincões do país.  Será o abril indígena em mobilização.

As raízes da mobilização indígena
As raízes estão na resistência secular dos primeiros habitantes dessa terra.  A invasão foi uma guerra permanente. Cada palmo de chão sagrado, assegurado ou reconquistado, foi uma batalha. Nada foi dado de mão beijada.  A sobrevivência foi uma arte de muita sabedoria. A razão maior da luta é a confiança e a certeza da vitória. Quem suportou mais de cinco séculos de massacres e opressão, não haverá de morrer na praia. De menos de cem mil na década de 1960, hoje estão beirando a um milhão de indígenas.
Sentem que a invasão continua. Invadem as terras e os corações. Aliciam as mentes, destroem as sementes, espalham a dor, a fome, a dominação. Sonham com um Brasil sem índios, espalham decretos de morte e anunciam que o fim dos povos originários é uma questão de tempo.  Não mais usam o fuzil ou metralhadora. Hoje matam com a lei. PEC, PLs e portarias. Aperfeiçoaram as armas. Matam silenciosamente não só o corpo, mas também as almas a cultura. Razões não faltam para se manter as mobilizações.


Das raízes brotaram os galhos, folhas e frutos
Quando em abril de 2003 um pequeno grupo de indígenas do sul do Brasil, especialmente Kaingang, Guarani e Xokleng, acampou  na Esplanada dos Ministérios, não imaginavam estar inspirando um importante processo de mobilização do movimento indígena no Brasil. Somando-se a essa ação, representantes do Conselho Indígena de Roraima, vieram manifestar a aliados, como o Cimi, a intensão de realizar anualmente encontros para pressionar a demarcação da terra indígena Raposa Serra do Sol. No que conseguiram total apoio para uma ampla mobilização, tendo então surgido a proposta de realização, em abril de cada ano, do Acampamento Terra Livre. Desde então, na Esplanada dos Ministérios, em frente ao Ministério da Justiça, se realiza o grande momento político dos povos indígenas do Brasil, o Acampamento Terra Livre – ATL.
Em 2009, finalmente, foi homologada a terra indígena Raposa Serra do Sol, razão maior do ATL daquela época.  Em 2010, a mobilização se deu em duas regiões onde os direitos indígenas estavam mais ameaçados: no Mato Grosso do Sul, a gravíssima situação dos Kaiowá Guarani e Terena, e no Pará, em função da construção da hidrelétrica de Belo Monte, ameando a vida e os direitos de vários povos indígenas. Em 2012, a mobilização Terra Livre se realiza no Rio de Janeiro, por ocasião da Rio +20, juntamente com a Cúpula dos Povos. Vários representantes de povos originários de outras partes do continente e do mundo estiveram presentes.   
Com uma participação em média entre 700 a 1.000 representantes de uma centena de povos, os acampamentos têm se constituído no amplo espaço político de luta e articulação nacional do movimento indígena. É o momento de debate, definição de estratégias e de visibilidade às lutas e reivindicações indígenas. 
O grande fator de mobilização tem sido a questão das terras/territórios indígenas. É em torno da demarcação e garantia das terras e usufruto exclusivo dos recursos naturais nelas existentes, que os povos tem se mobilizado, fundamentalmente. Olhando os documentos finais dos dez ATLs se percebe a centralidade da questão territorial. Além da falta de definição e execução clara de políticas públicas coerentes, nas áreas de saúde, educação e sustentabilidade, tem se sobressaído a falta de definição clara de uma política indigenista.  Não avançou a criação do Conselho Nacional de Política Indigenista, permanecendo até hoje como simples Comissão, de consulta e não de deliberação. Também as manifestações se deram em torno do sucateamento do órgão indigenista, a Funai, como política deliberada dos sucessivos governos nas últimas décadas.
Nos últimos anos as preocupações do ATL giraram bastante em torno das ameaças as direitos indígenas, através de uma série de iniciativas e ações em nível dos três poderes, e com maior intensidade no Poder Legislativo e a total paralização dos procedimentos de regularização das terras indígenas.  Isso fica evidenciado nos documentos dos últimos dois acampamentos indígenas.
No ATL de 2013:
1. Repudiamos toda essa série de instrumentos político-administrativos, judiciais, jurídicos e legislativos, que busca destruir e acabar com os nossos direitos conquistados com muita luta e sacrifícios há 25 anos, pelos caciques e lideranças dos nossos povos, durante o período da constituinte;
2. Não admitiremos retrocessos na garantia dos nossos direitos, sobretudo se considerarmos que o passivo de terras a demarcar é ainda imenso. Das 1046 terras indígenas, 363 estão regularizadas; 335 terras estão em alguma fase do procedimento de demarcação e 348 são reivindicadas por povos indígenas no Brasil, mas até o momento a Funai não tomou providências a fim de dar início aos procedimentos de demarcação”.
Já no ATL de 2014:
É por essa razão que protestamos hoje no Ministério da Justiça contra a paralização dos procedimentos de demarcação e exigimos:
- A imediata publicação de todas as portarias declaratórias, despachos de identificação e delimitação, e decretos de homologação (conforme anexo) que se encontram paralisados sem nenhuma razão confessável.
- A desistência de todas as medidas genocidas que paralisam a demarcação das nossas terras, incluindo a Minuta de Portaria proposta pelo MJ, e também a revogação da Portaria 303/AGU.
Nossos guerreiros e lideranças continuarão em luta até que nossas reinvindicações legítimas e constitucionais sejam atendidas, e não nos curvaremos diante da repressão e das injustiças do Governo dos brancos, que nos oprime há mais de quinhentos anos.

Sem terra não há cultura, sem terra não há saúde, sem terra não há vida!

Toda força aos que lutam!”.

Ao comemorarmos os 41 anos do surgimento de um movimento indígena inédito e combativo, ligado aos movimentos de lutas sociais por transformações profundas nos países da América Latina, num promissor esforço para a superação das ditaduras e colonialismo, na construção de sociedades de Bem Viver, fazemos memória da 1ª Assembleia Indígena Nacional, realizada em Diamantino, Mato Grosso, em abril de 1974.

O grito guerreiro, do fundo da terra, da floresta ou da raiz continuará anunciando um novo amanhecer. Não podem matar nosso sonho. “Somos lutadores resistentes de uma causa invencível”.

Com os povos indígenas, originários de todo o continente, Abya Yala, com os quilombolas, populações tradicionais, com os empobrecidos e oprimidos, queremos renovar nossa profunda convicção de que da vida negada e da árvore decepada, permanecerá a raiz de onde brotarão flores e frutos, novos projetos de sociedade, de Bem Viver.

Egon Heck
Acampamento Terra Livre 2015

Brasilia, 10 de abril de 2015

terça-feira, 7 de abril de 2015

Por um Brasil sem ditadura e sem colonialismo


“Num encontro com a presidente Dilma, eu falei pra ela que era preciso descolonizar o país. Ela me respondeu que já está descolonizado. Pensei comigo: essa é uma prova de que ela não conhece e não quer conhecer o país a partir de sua raiz, os habitantes primeiros, os povos originários desse país”.

Era primeiro de abril em Porto Alegre. Coincidência. Em debate os 51 anos do golpe militar civil.
Em torno de uma centena de pessoas preocupadas em debater o passado para entender o presente e traçar estratégias de um futuro melhor para a população brasileira, particularmente os empobrecidos, as populações tradicionais, os trabalhadores do campo e da cidade, os sem terra, e os povos indígenas, estavam reunidas no seminário nacional promovido pelo Andes (Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior). Nos debates, os diversos aspectos dos 21 anos de ditadura militar, civil/empresarial de 1964 a 1985 foram debatidos e aprofundados. A intensão foi também ter uma visão latino-americana dos processos de ditadura, anistia e formas de punição dos responsáveis pelas graves violações dos direitos humanos.


A ditadura militar e os povos indígenas


Os povos indígenas estão trazendo à tona as violações de seus direitos fundamentais à vida, a seus territórios, recursos naturais e formas diferenciadas de organização. As graves violações dos direitos humanos dos povos indígenas estão sendo debatidos, desde as aldeias, até as universidades e diversas instâncias do Estado brasileiro. E não são apenas memória historiográfica. Antes de tudo, é a busca da verdade para fazer justiça e garantir a não repetição das crueldades contra os povos originários.

Trazer à consciência nacional “os assassinatos, chacinas, massacres, envenenamentos, prisões ilegais, torturas, violência psicológica, intimidações e ameaças, despejos violentos, atentados contra aldeias, remoções forçadas, integração e escravização, estupros, campanhas difamatórias, preconceitos, crimes que geraram (e por continuarem acontecer em escala ainda geram) traumas individuais e coletivos” (Zelic, Marcelo). Essa foi a tarefa da Comissão Nacional da Verdade, cujo relatório foi entregue à presidente Dilma, no dia 10 de dezembro passado. A rigor, foi um início de processo que deverá continuar. Pois só assim se poderá iniciar um processo de reparação e justiça para os 8.350 indígenas mortos, no período de investigação da CNV – Comissão Nacional da Verdade (pg. 159).

Apesar do pouco espaço destinado à questão indígena (58 páginas de um total de 4.400), da falta de uma estrutura e tempo que permitissem um trabalho mais abrangente, fundamentado e que se propusesse não apenas fazer emergir a verdade, mas que avançasse na perspectiva da punição dos crimes e reparação coletiva e individual, foi um ponto de partida promissor, a ser levado avante pelos povos indígenas e seus aliados. Para isso será fundamental que a Comissão Indígena da Verdade e Justiça, criada em agosto do ano passado, passe a funcionar e cobre do Estado e da sociedade total apoio para seu efetivo funcionamento.


Os crimes da ditadura e a impunidade


Um dos aspectos que chama atenção no caso da ditadura no Brasil é a forma de anistia que foi negociada e sua interpretação que resultou na total impunidade daqueles que atuaram contra as centenas de desaparecidos e assassinados e torturados pelo regime militar e milhares de indígenas mortos.
No Chile, Uruguai e Argentina houve também a lei da anistia, mas com a pressão dos movimentos sociais se conseguiu vislumbrar brechas que levaram à punição de governantes e responsáveis pelas truculências, mortes e desaparecidos.

No Brasil não se chegou à condenação dos responsáveis pelas mortes e desaparecimentos. Na questão indígena se chegou a raras compensações individuais e coletivas pelo esbulho de alguns territórios indígenas, como no caso dos Panará, dos Gaviões do Pará e mais recentemente a Comissão da Anistia do Ministério da Justiça, pediu desculpas em nome do Estado brasileiro e indenizou membros dos Kewara – Suruí, do Pará. Tudo isso, porém, representa uma ínfima parte de todas as atrocidades cometidas contra esses povos.


Para além do papel


Conforme Zelic são mais de 600 mil páginas disponíveis com informações sobre os povos indígenas e violação de seus direitos. Dentre eles destacamos o Relatório Figueiredo, de 1967, em que são 7.700 páginas contendo denúncias de graves violações dos direitos dos povos indígenas. Além disso, urge que se faça o registro da memória oral das testemunhas vivas de inúmeras violações dos direitos humanos dos povos indígenas – massacres, chacinas e ações de extermínio-genocídio de populações indígenas em todo o país. Uma tarefa gigantesca para uma dívida histórica da nação brasileira para com os primeiros habitantes desse país.

Destacamos ainda as recomendações feitas no relatório da comissão que tratou da questão indígena. A questão mais importante é a demarcação, desintrusão e garantia das terras/territórios dos povos indígenas. E junto com essa ação de reparação coletiva vem a necessária recuperação ambiental das áreas degradadas. Só assim o pedido de desculpas poderá ser sincero e consequente por parte do Estado brasileiro. Juntamente com essas ações será fundamental uma campanha permanente de informação sobre a realidade, vida e luta dos povos indígenas, que passe principalmente pelo processo formativo em todos os níveis escolares. Para alimentar essa rede de informação será importante a criação de uma Comissão Indígena da Verdade e Justiça, que aprofunde a memória e busque a justiça. Uma Comissão da Verdade exclusiva da questão indígena.
Egon Heck
Cimi Secretariado

Brasília, 6 de abril, 201 - Abril Indígena - mobilização nacional e regionais